terça-feira, 9 de junho de 2020

[CRÔNICA] As crianças da década de 80/90 e a repulsa pela “Geração Mimimi”


Por Guilherme César



Quando você pensa em sua infância, já foi capaz de sentir o peito esquentar? A leve menção às lembranças daquela época saudosa lhe arranca sorrisos, afinal o mundo era melhor, mais simples, mais divertido. As tecnologias que tanto sufocam os jovens de hoje não existiam, a criminalidade e os perigos que tanto impedem as crianças de se divertirem nas ruas não estavam tão presentes. O respeito era algo imprescindível e a homossexualidade, o feminismo e outras questões tão incômodas eram raras ou inexistentes. Tudo era certo, tudo era simples. Podia-se rir dos colegas de classe, apelidar e fazer brincadeiras sem temer que os alvos se ofendessem e quando era conosco, rebatíamos na mesma proporção e tudo terminava em gargalhadas. Os valores morais eram respeitados, a família era protegida e o mundo não sofria com o medo de “magoar” uma geração “fresca”, as crianças dos anos 70 aos 90 eram fortes, cresciam sabendo lidar com o mundo. Onde tudo deu errado? O que transformou o mundo tão negativamente?


Até aqui, você que hoje tem mais de 30 anos deve ter se identificado. Você que hoje tem seus 50 anos, alguns filhos e família formada, que se assusta com os horrores que vê na TV e sente saudade de como o mundo era melhor em sua infância, com toda certeza se sentiu tocado. Afinal, tudo era mais saboroso naquela época. E sim, é bem provável que fosse, para o paladar daquela época.
Tenho lido muitos relatos entristecidos e vejo muita gente revoltada com a mudança do mundo. Foram tantos textos, comentários, tanto saudosismo e nostalgia, que me senti na obrigação de tentar entender e refletir sobre o que afinal mudou de lá para cá e como surgiu essa geração dita como “mimizenta”. Pois bem, aguenta mais um pouco, que logo você entenderá.
Não é que hoje o mundo está mais violento, ou existem mais gays, ou o movimento feminista está mais chato, é que hoje temos mais informação. As novas tecnologias nos inundam de informação e atualmente é muito mais simples ter contato com notícias, dados, números, estudos. Graças à internet, hoje podemos encontrar tudo que queremos saber na distância de um clique, pelo menos para a parte da população agraciada com um aparelho com conexão. Não se trata apenas do aumento dos números, mas sim da capacidade de nos conectarmos, de descobrirmos. E claro, o crescimento populacional faz com que a pluralização aumente. Simples matemática.
Indo um pouco além da questão tecnológica, mas precisamente na parte referente à formação psicológica, quais os motivos dessa geração ser tão fresca, afinal para que se exaltar com as brincadeiras e apelidos? No passado não existia bullying, todo mundo brincava e apelidava todo mundo e ninguém morreu por isso. Bom, os seus amigos não, mas muita gente sofreu com isso e talvez calado. Bullying pode ser um termo que parece recente, mas a prática permeia a sociedade desde sempre. Apelidos, ofensas, destacar características físicas, não é por isso não te incomodar ou ter incomodado que não fará alguém se sentir péssimo. Segundo dados da OPAS (Organização Pan-Americana de Saúde) que funciona como escritório da OMS (Organização Mundial da Saúde) nas Américas, o Brasil é um dos países com maior taxa de pessoas com ansiedade e um dos maiores afetados pela depressão. E o que isso se relaciona com o “zoera” de sala de aula? Segundo a própria OMS, transtornos alimentares, por exemplo, normalmente surgem na infância e inicio da juventude e quase sempre estão relacionados à ansiedade e depressão. A anorexia que ataca muitas mulheres vem de uma busca incessante por um corpo perfeito, que se encaixe em padrões da sociedade. E a necessidade de emagrecer a todo custo muitas vezes começa pela pressão social vivida na escola, lá mesmo, com os apelidos “que não machucam ninguém”.
            Existe também o crescimento alarmante da taxa de suicídio entre jovens, que segundo dados da BBC Brasil, teve um crescimento de quase 30% desde os anos 80 até a última década. Suicídio esse decorrente muitas vezes da depressão e ansiedade, que é desencadeado pelo bullying. Para você, pode parecer que os jovens estão mais frágeis, mas infelizmente não é bem assim.
            Quando dizemos que no passado todo mundo levava as brincadeiras com algo normal, não paramos para olhar ao nosso redor e ver como o consumo de drogas e álcool subiu tanto. O quanto o suicídio e os transtornos alimentares e psicológicos cresceu e isso não refere-se a fraqueza, mas ao efeito cascata. A velha causa e consequência. Normalizar a prática do bullying na geração dos anos 70/80 fez com que anos depois surgissem pais que achassem normais essas atitudes e criassem seus filhos com base nesses valores. Afinal, dizer para meu filho ser forte e aguentar as brincadeiras o fará crescer como eu cresci, mas acontece que dizer que essa prática é normal só faz com que ela se perpetue e pode até ser que seu filho “seja forte” e aguente, mas o amigo dele não. Dizer que apelidos ofensivos são normais só faz com que nossas crianças se sintam obrigadas a tolerá-los, o que é o mesmo que fazer com que elas engulam veneno e ainda digam que é gostoso. Os danos podem surgir quando menos esperamos em forma de alcoolismo, depressão, abuso de drogas, ou até o suicídio.
            Devemos entender que essa fragilidade não é um problema e falar sobre esses assuntos é o melhor caminho para encontrarmos uma solução. Isso não é mimimi, é a forma mais plausível de dar foco ao que é ruim e negativo na sociedade. Não é voltando a como era no passado, pois esse passado não existe mais. Na minha infância eu ouvia muito que a minha geração, dos anos 90, era a salvação do mundo, que nós seriamos responsáveis por mudar o mundo para melhor junto das gerações seguintes e bom, é isso que estamos tentando fazer.
            O mundo muda e os valores também. Nos deparamos com situações problemáticas em que as pessoas acham normal julgar a sexualidade alheia embasando-se em crenças e ideais ultrapassados. A homossexualidade, por exemplo, sempre existiu. As pessoas negras, também e junto delas o racismo. As mulheres lutam para ter um espaço no mundo e serem tratadas com respeito faz um bom tempo, só que agora, a luta pela igualdade, contra o racismo e pelo direito de escolher sua sexualidade ganhou a mídia e acho que o que incomoda é o fato de isso ser contra o que você acredita. Porém, isso é apenas resultado da mudança do mundo, da luta da dita geração mimimi por um planeta em que as pessoas realmente se respeitem e que as consequências do que era normal décadas atrás não causem mortes de quem só quer ser feliz hoje em dia.
            Bullying é errado, racismo é errado, machismo, homofobia, todas as formas de preconceito, tudo isso é errado. Temos que aceitar. Nossos jovens não são mais fracos, pelo contrário, são mais corajosos. Pois muitos têm a coragem de dizer o que está errado e o que precisa mudar. O mundo está em mudança e isso pode até parecer desconfortável, mas com toda certeza é aquilo que vocês nascidos nos anos 70 previam ao dizer que o mudaríamos. Mudaremos, para que todos sejam aceitos, para que não seja mais necessário aceitar ofensas mascaradas de brincadeiras, que podem até não afetar alguns, mas que destroem outros. É necessário empatia, para nos colocarmos no lugar de quem sofre, de quem chora, de quem se mata. Não se trata apenas do seu bem-estar, mas do de todos. Só assim vamos entender que o passado até parecia bom, mas não era bom para todos. Não perpetue aquilo que faz alguém sofrer, pois ninguém infelizmente consegue ser forte o tempo todo.



Algumas fontes:
OPAS/OMS - Saúde mental dos adolescentes

Crescimento do aumento de suicídios entre jovens

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